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Como o racismo afeta os direitos das crianças e dos adolescentes?

Atualizado: 14 de jul. de 2023

No dia de hoje, 13 de julho de 2023, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 33 anos e muitas de suas esferas de proteção estão intimamente interconectadas com a questão racial em nosso país como, por exemplo, os desafios da adoção interracial, a necessidade da comunicação compulsória de maus-tratos e o dever de proteção física e psíquica de nossas crianças. Não ignoramos aqui os deveres e as responsabilidades do Estado, em suas múltiplas dimensões, na promoção de políticas públicas racialmente orientadas para a proteção da infância e da adolescência da discriminação racial, seja ela direta e ou indireta. Mas, como as famílias e escolas podem ajudar nisso?


Nomeando o racismo silenciado

A família é uma instituição que está vinculada a outra mais ampla, ou seja, o grupo social ou nacional. Assim, mesmo quando a criança negra está inserida em uma família também negra, o rompimento imediato com esses eixos de referência mais amplos não é fenômeno natural pois as estruturas do racismo também se movem em grandes blocos ou através de pequenas capilaridades. Para exemplificar o que quero dizer, apenas recentemente o mercado editorial de literatura infantil tem ganhado força no que diz respeito à representatividade de histórias nos quais as personagens sejam não brancas.


Isso significa que até mesmo no mundo da imaginação infantil a “regra” é ser branco. O mesmo vale para os desenhos animados e demais instrumentos de ludicidade. Assim, quando uma criança branca ingressa no mundo social, encontra uma similaridade entre o seu meio familiar, sua intimidade e a vida nacional, ainda que seus recortes de classe e de gênero não lhes sejam favoráveis, ou seja, um menino branco pobre. O mesmo não ocorre com a criança negra, até bem pouco tempo e ainda hoje, desde cedo o mundo ao qual é apresentada é branco e é nesse momento, na mais tenra idade que fica exposta a determinadas vivências que estão na origem dos traumas, mesmo que a classe e o gênero à qual ela pertença possa parecer lhe proteger, um menino rico negro sempre será uma criança negra.

Escola inclusiva

Constatada a impossibilidade de se desconsiderar o estreitamento entre as estruturas familiares e as estruturas sociais, perguntamos: dada a permanência das estruturas racistas sobre as quais a sociedade brasileira foi/é construída, qual mundo é possível apresentar aos nossos filhos e filhas? Como fazer isso sem que suas infâncias percam o encanto, aquele pavio que nos faz resistir em sanidade à vida adulta?


Antes de tudo, pais, mães e principais cuidadores precisam se preparar para fornecer aos seus filhos/as os instrumentos para que se defendam, desde crianças, de práticas de discriminação racial e a melhor forma de isso acontecer é assumindo a sua existência.


Deixar de conversar sobre racismo não o fará desaparecer, ao contrário, pode tornar nossos filhos ainda mais vulneráveis, permitindo-os que elaborem na solidão de seus sofrimentos versões equivocadas sobre si mesmos. Assim, mesmo difícil, sobretudo porque esse momento pode funcionar como gatilho para a reabertura de feridas não cicatrizadas, para o caso de pais e mães negros/as, não é possível se furtar de uma conversa franca com seus filhos e filhas sobre o problema.


No caso de pais e mães brancos, biológicos ou por adoção, o movimento e o deslocamento serão maiores e ainda mais necessários. É lamentável que os Tribunais de Justiça ainda não disponham de cursos preparatórios, nem para os pais brancos, nem para os servidores públicos que atuam nessa área, que precisam estar capacitados para realizar as primeiras interlocuções sobre a questão com aqueles que buscam a vivência da paternidade e da maternidade por essa via. O resultado pode ser muito frustrante tanto para os pais, que não estão habilitados a lidar com as diferenças raciais presentes na sociedade e, portanto, dentro de si mesmos, quanto para as crianças em relação, por exemplo, aos desafios da construção de uma autoimagem positiva e de um constante sentimento de desencaixe intrafamiliar.

Naturalmente, o tipo e a profundidade da abordagem devem considerar a idade e a maturidade da criança, respeitando sempre os momentos e limites em relação ao tema, que deve ser abordado de forma sincera e transparente. O horizonte a ser alcançado não é a antecipação de vivências ou o refreamento das interações, o que poderia gerar uma postura defensiva e pouco livre por parte da criança em suas relações sociais.


É preciso também, no caso de pais e mães negros, atentar para não transferirmos nossas experiências e traumas para nossos filhos, deixar que eles percorram os seus próprios caminhos, mas sempre com um olhar cuidadoso e vigilante. Também não precisamos ter receio de pedir ajuda caso seja necessário. O maior objetivo é impedir que as crianças sofram caladas e ou pensem que há algo de errado com elas. É preciso que elas se sintam seguras para conversar sobre suas vidas e, quando isso acontecer, que jamais os pais, as mães ou os responsáveis pelas crianças lhes digam que “isso é uma bobagem” ou que “deixem isso para lá”.


Em um cenário de possibilidades pouco atrativas, não há de se estranhar que ao ingressarem no mundo social, meninos e meninas negras prefiram se identificar com um imaginário que os afastem de uma concepção negativa sobre si, ainda que paradoxalmente, essa escolha represente danos muitas vezes incontornáveis em suas autoestimas. Assim, desde muito cedo elege-se a mulher branca como um ideal a ser perseguido, vitoriosa, bela e em posição de destaque social. A mulher negra geralmente é apresentada em postos de limpeza, de serviços precarizados e pouco valorizados socialmente e de sexualidade exacerbada. Os homens negros agressivos, pouco intelectualizados e perigosos.

Para agirmos preventivamente e com o intuito de minimizar os impactos causados pela realidade, precisamos municiar os corações das crianças negras de referenciais a partir dos quais seus corpos estejam em perfeita sintonia com os seus espíritos, rompendo com um ciclo de inadequação que se expressa nas identificações, nos gostos e nas preferências estéticas que prescrevem a branquitude como algo bom, heroico e belo e a negritude como o seu oposto. Isso os tornará partícipes de algo maior e valoroso, dando-lhes a coragem para em uma sociedade racista, declararem-se negros. O discurso sobre si lhes dará o entendimento de saberem que não estão sozinhos, há uma coletividade a ampará-los.

Essa política de enfrentamento ao racismo importa especialmente porque da esfera da afetividade, substância necessária para a modulação do instrumental necessário para as práticas de autoamor e de autocuidado sem as quais a luta por igualdade encontra solo infértil. Lançadas aos ventos da indiferença, as máscaras que um dia conduziram a um ingresso assimétrico no mundo branco não mais sufocarão o ser, impedindo o pleno existir e novos processos de elaboração do homem e da mulher negra poderão ter início a partir daí.


Criando crianças antirracistas

Embora a abordagem centrada na criança negra seja incontornável, afinal, trata-se do eixo mais vulnerável dessa relação, partimos do entendimento de que se estar no mundo é relacionar-se, nossas atenções também devem considerar as crianças brancas. Também elas precisam ser protegidas do racismo.

Escola antirracista

O racismo mata, dói, traumatiza e faz sangrar e, como todo fenômeno social, precisa de um agente para operacionalizá-lo. Nesse sentido, uma educação antirracista significa trabalhar para proteger também as crianças brancas do racismo, garantindo que elas não sejam esses sujeitos de morte, por ação ou omissão.

A aliança entre uma política dos afetos, a promoção de uma educação protetiva e de uma educação antirracista conduz a uma prática coletiva de atenção às crianças, negras e brancas, e ao universo escolar ao qual estão inseridas, o que significa uma busca ininterrupta pelo alinhamento entre os espaços por elas frequentados e os sujeitos que as circundam.


Rompendo os muros das escolas

Considerando que a escola é um dos primeiros lugares de apresentação do mundo para as crianças, provavelmente a pergunta elaborada por aqueles conscientes da importância de se estar engajado na luta antirracista seja: qual mundo quero apresentar às minhas crianças? Muito provavelmente, a resposta ideal gire em torno de considerações sobre um ambiente igualitário, diverso, desprovido de procedimentos hierárquicos e valorativos construídos a partir da cor da pele, um mundo inclusivo e livre. Essa seria a escola que deveríamos buscar.

Muito dificilmente encontraremos objeções em relação aos predicativos dessa escola imaginária, mas as respostas que precisamos por vezes necessitam de perguntas difíceis de serem feitas e se queremos transformar verdadeiramente a sociedade na qual vivemos, não há mais tempo para nos desviarmos delas.

Presente na sociedade brasileira o racismo, muito provavelmente também estará na escola, por mais progressista e inclusiva que ela se proponha a ser. Então, o primeiro a ser feito é o reconhecimento de que a escola será um ambiente racista. Não se trata de má-fé ou pessimismo, mas de se adquirir um pressuposto de atenção e vigilância permanentes, sem o qual jamais interromperemos os ciclos geracionais de negligência aos traumas oriundos da exposição de seres humanos a práticas contínuas de racismo durante a infância. Mas se o racismo também está nas filigramas, nas escapadelas do nosso vocabulário, nas “observações inocentes”, engana-se aquele que acredita que por estarem nas minúcias, nos interstícios do cotidiano, o racismo seja menos venal, as doenças mais perniciosas não podem ser vistas a olho nu.


Isso significa, em primeiro lugar, estar atento aos corpos que circulam pelo ambiente escolar: qual a política de limpeza da escola? As crianças participam? O que lhes é ensinado sobre as responsabilidades e os processos de limpeza dos próprios espaços? Quem ajuda com a limpeza da escola? Qual a cor de sua pele? Qual é a sua remuneração? Elas/eles têm filhos? Se sim, com quem eles/elas ficam quando seu pai/sua mãe está trabalhando? Eles/elas estudam? Onde? Poderiam estudar na mesma escola em que seus pais/mães trabalham? Se não, por que? Quem são os/as professores/as? Qual é a cor de sua pele? Eles/elas têm filhos? Se sim, com eles/elas ficam quando seu pai/mãe está trabalhando? Eles/elas estudam? Onde? Poderiam estudar na mesma escola em que seus pais/mães trabalham? Se não, por quê?


O próximo movimento é absolutamente prático e clama para que os pais e mães não apenas deixem os seus filhos nas portas das escolas, que cruzem também eles e elas os seus portões.


Parte do reconhecimento de que a promoção de uma educação pela não discriminação requer dedicação e compromisso contínuo de toda a comunidade, que deve estar atenta e exigir que as prescrições curriculares relativas às histórias e culturas negras sejam aplicadas com o mesmo engajamento das disciplinas tradicionais, não se restringindo a eventos isolados e estereotipados, perpassando todo o currículo.


Só a partir da priorização do enfrentamento do racismo poderemos garantir que os direitos das crianças e adolescentes serão honrados desde a primeira infância.



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