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O que é ambiência racial e por que precisamos falar sobre ela?

Atualizado: 25 de out. de 2023


Gostaria de te pedir que parasse e, com calma, observasse algumas fotos. A primeira delas (disponível nesse link) é de agosto de 2021 e “quebrou a internet”, era o retrato de uma equipe de profissionais da XP Investimentos em um topo de um prédio. A falta de diversidade racial e de gênero gerou uma Ação Civil Pública movida pela ONG Educaafro, concluída com um acordo da empresa se comprometendo com a criação de um comitê de diversidade e grupos de afinidade para tratar sobre o tema, bem como a disponibilização de um canal de denúncias a comportamentos discriminatórios e ofensivos, dentre outras ações.


A segunda foto, de fevereiro deste ano, registra a posse de 99 novos juízes do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Posse Juízes TJ/SP
Posse Juízes TJ/SP - Créditos da foto: Revista Consultor Jurídico, 14.02.203

Por fim, a última foto representa a primeira turma de medicina da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) que, de forma inédita, formou 12 alunos negros, cerca de 40% da turma, composta por 29 estudantes. A formatura desses estudantes e dessas estudantes, além de ser um marco na história do país, também significa um repensar da própria medicina em uma série de aspectos que vão desde o currículo dos cursos, quanto à própria área da saúde (mas esse é um assunto para um outro artigo).

Formatura Primeira Turma Medicina UFRB (2019) - Arquivo pessoal/Imagem retirada do site Folha de São Paulo
Formatura da 1ª Turma Medicina UFRB (2019) - Arquivo pessoal/Imagem retirada do site Folha de São Paulo.

Mas, o que essas fotos nos comunicam?


Nos tempos de hoje, nos quais instituições públicas e privadas estão sendo cada vez mais provocadas a incorporar em seus quadros “a diversidade”, cujas referências à ela oscilam entre uma espécie de entidade transcendental à qual todos agora precisam responder, sob pena de perder cifrões, e a doçura da voz de uma mãe pedindo para a gente levar aquele casaquinho porque certamente vai esfriar (não se esqueça da diversidade, minha filhinha..), cabe a pergunta: o que é essa tal diversidade? E por que ela é tão importante? Quais as consequências de sua não observância? Ela se resume a uma questão numérica ou é algo para ficar “bem na fita com nossa clientela”? Como e porque sair desse discurso raso e vazio?

Racismo e diversidade

Uma pista para responder a esses questionamentos pode ser encontrada nas palavras do sociólogo francês, Edgar Morin, que nos diz que o tesouro da unidade humana é a sua diversidade, ou seja, “a diversidade somos todos nós”.


Tudo muito bom, tudo muito bonito, mas, se a diversidade é um tesouro, por que só os chamados “diversos” sentem (e o verbo sentir aqui não foi utilizado à revelia) os efeitos perversos de serem colocados nesse lugar? Dizendo de outra forma, os diversos de hoje são aqueles que historicamente foram e ainda são marginalizados. Por isso, para garantir desdobramentos não esvaziados das reivindicações por diversidade e inclusão precisamos primeiro deixar à vista os motivos que as justificam, que podem ser resumidos aqui com as experiências de ser negro e negra no Brasil. Depois, entender a necessidade de existirem mecanismos capazes de conduzir, a partir de um exercício de tradução, a formulação de políticas públicas e de gestão privada capazes de tornar os ambientes verdadeiramente plurais e diversos.


Em se tratando da questão racial, costumo dizer que o racismo é um fenômeno sensorial à população negra, afinal, somos ensinados por aqueles que nos amam a nos autopreservar, andando sempre com nossas identidades e “bem arrumados”, por exemplo. Para uma pessoa negra, escolher o que vestir tendo como único critério o gosto pessoal é um luxo do qual não se é possível gozar. Não raro, pensamos em nossas roupas como espécies de armaduras contra a potencialidade de sofrermos racismo, seja por meio das forças de segurança pública ou em nossos ambientes de trabalho, por exemplo. Além disso, aprendemos nos “corres da vida”, a ler as placas invisíveis dos estabelecimentos, que piscam reluzentes dizendo que aqueles espaços não são para nós.


Por outro lado, o racismo também não é algo desconhecido para as pessoas brancas. Se em sociedade vivemos de forma relacional, sendo nossa sociedade estruturalmente racista, uma das formas de sua manifestação se dá pelas e nas relações sociais. A prova disso é a surpresa quando nos veem ocupando cargos que “naturalmente” não seriam ocupados por nós. É o fato da terceira foto (a da formatura de uma turma de medicina com 40% de formandos negros/negras) ser notícia como algo a ser celebrado (e precisa ser) e, ao contrário, nenhum estranhamento advir das duas primeiras. É esperado que pessoas brancas estejam no topo. A famosa frase, “a dona da casa está”, mostra de maneira irrefutável como o argumento de que “eu não vejo cor”, está eivado de fragilidade lógica e de que é preciso sim nos responsabilizar pela interrupção ou pela continuidade de todos esses acontecimentos.


São as experiências de ser negro/negra no Brasil que deixam manifestas as reivindicações pela diversidade, já que a norma assenta nos não racializados, da estética à política partidária, alcançando o mundo das artes e da cultura valorizada. Além de não perder de vista as razões de se reivindicar as políticas de diversidade, outra maneira de dar concretude às riquezas de sermos diversos em nossas unidades e de sermos únicos em nossas diversidades, de significar o “todes nós” de Morin, é entendermos como e quais as forças vitais estão sendo impactadas pelo racismo. Nessa busca, nós da Emoriô encontramos o conceito de ambiência racial.


Ambiência Racial

Elaborado por Kaercher com o objetivo de se pensar a educação antirracista nas escolas, a autora trouxe o conceito de ambiência a partir da acepção da arquitetura e diz respeito a um “espaço, arquitetonicamente organizado e animado, que constitui um meio físico e, ao mesmo tempo, estético ou psicológico, especialmente preparado para o exercício de atividades humanas” (2011, p. 25). A autora uniu o substantivo ambiência ao adjetivo racial a fim de promover uma reflexão objetivamente direcionada à intervenção em espaços racialmente hostis. No que diz respeito, por exemplo, às instituições educacionais, uma série de pesquisas nos mostram como estas ainda estão profundamente orientadas por uma ambiência racial tradicional, que privilegia “uma raça, uma cultura, um grupo étnico em detrimento de outros que legitimamente compõem a formação étnico-social e cultural brasileira”. A unidade de um grupo suplanta a diversidade de outros.


Pensar o ambiente escolar é pensar muito além de um espaço agradável e fisicamente seguro, com professores formados e capacitados à transmissão de conteúdos. Dentre outros aspectos, pensar o ambiente escolar é estar ciente que a experiência na escola irá ampliar e intensificar a socialização de nossas crianças e adolescentes para além daquela que acontece no interior de seu grupo familiar e de sua comunidade. É na escola, como diz Eliane Cavalleiro, que a criança irá conhecer outros modos de ler o mundo. Nesse sentido, cabe perguntar, quais lentes de mundo estão sendo fornecidas por nossas escolas às nossas crianças?


Escolas cujos ambientes são racialmente saudáveis fortalecem a autoestima e a saúde mental de crianças e jovens negros, ajudam a prevenir a evasão e o abandono, formam cidadãos mais fortes e empáticos para com a existência coletiva, além é claro, de ampliarem os horizontes disciplinares de seus estudantes, municiando-os de ferramentas que lhes ajudarão em seus desafios da vida adulta, pois estão preocupadas com currículos que abordem a cultura africana em toda a sua extensão, riqueza histórica e potencialidade passada, presente e futura. Ao contrário, escolas racialmente hostis provocam, num plano individual, além de dor e sofrimento, perversos impactos coletivos, como, por exemplo, o estreitamento imagético e de conhecimento de nossos jovens e adolescentes, sejam brancos ou não brancos. Assim, se em sociedade vivemos de forma relacional, quais os significados sobre si, sobre o outro e sobre o mundo a escola, instituição auxiliar do processo de socialização tem fornecido às nossas crianças?


Ambiência Racial nas Escolas

O conceito de ambiência racial nos ajuda a entender quais são essas lentes e, a partir daí, as consequências delas advindas. Uma prática escolar silenciosa (honrando aqui os ensinamentos de Cavalleiro), conduz à absorção, por parte de crianças, negras e brancas, do entendimento de que as diferenças que as constituem são sinônimos de desigualdade, inferioridade e superioridade, fazendo com que, não no futuro, mas, no agora, elas naturalizem certas práticas interpessoais, institucionais e estruturais do racismo.

Isso faz com que a ambiência racial, mais do que um conceito científico, seja também uma prática, uma prática reflexiva e de transformação da realidade, que não se restringe, portanto, ao ambiente escolar.


A Ambiência Racial para além das escolas

As leituras dos escritos da professora Ruha Benjamin (Universidade de Princeton) nos ajudaram a ampliar o entendimento de ambiência racial para além das escolas. Ruha resgata o conceito de Weathering, elaborado por Arline Geronimus, em 1992, voltado às análises do campo da saúde pública. Para Geronimus, as explicações sociopolíticas ocasionam disparidades raciais de saúde ocasionando doenças evitáveis, e mortes prematuras, por exemplo. Além disso, esses argumentos funcionariam apenas para imputar à população negra a responsabilização por uma ordem social que os deixa doentes. Assim, os ambientes hostis, as desigualdades sociais, o medo das forças de segurança, os impactos traumáticos do racismo ainda na tenra idade, o desemprego, a vigilância contínua, enfim, uma vida de hostilidades afeta nossos corpos, física e mentalmente, mesmo em lugares onde não existam uma política explícita de racismo.


A ambiência racial é o grau de adequação objetivo e subjetivo das estruturas espaciais para vivências positivas de grupos raciais diversos, particularmente, negros e indígenas. E isso nos faz retornar à terceira foto. Ainda considerando ser uma exceção e de estar bem longe dos números ideais, não deixa de ser notícia a colação de grau, em uma mesma turma, de 12 médicos negros. O que queremos chamar atenção aqui, no entanto, é que mesmo representando 40% da turma, os relatos desses estudantes mostram o quão racialmente hostil era a faculdade de medicina e isso se replica em uma série de outros espaços. Então, não se trata apenas de representatividade, mas de uma mudança em nossas capacidades de entender o mundo, no alargamento de nossa cosmovisão. De, a partir de uma outra estruturação (objetiva dos espaços e subjetiva do nosso ser), finalmente entender que a vida só será boa, quando for boa pra todo mundo.


Nos entendermos únicos e diversos é processo que se dá ao longo de toda a nossa experiência de vida e em todos os espaços da vida, é isso que nos confere humanidade e riqueza. É certo que a educação infantil, as creches e pré-escolas são espaços que auxiliam no processo de socialização primária da criança, mas o processo de socialização em si não se esgota ali e se estende ao longo de nossas experiências no mundo e com o mundo. A pluralidade que nos torna humanos permite que esse processo jamais se cristalize por completo, há sempre uma abertura para o novo, para o/a outro/a para o incompreendido, para o não vivido. E é por isso que, como conceito-ação, a ambiência racial nos faz entender que não são apenas as escolas que precisam diagnosticar, compreender e se preocupar com a qualidade racial de seus espaços, mas também as instituições públicas, as empresas, o Poder Judiciário, os hospitais, as faculdades de medicina, os shopping centers, os supermercados...


Sem essa compreensão a “questão da diversidade”, se torna apenas um checklist a ser cumprido dentro da temática do ESG e, infelizmente, com poucas chances de transformação. Entendemos, como diz nosso Manifesto, que a educação antirracista precisa estar nas escolas e também para além delas. Afinal, se aprendemos a ser racistas, podemos também aprender a ser antirracistas, a partir de um conceito ampliado de educação. Para isso, acreditamos que o ponto de partida é o diagnóstico acerca do estado da ambiência racial dos espaços nos quais queremos intervir. Essa mensuração é feita por nós a partir de uma perspectiva teórica que se vale de metodologias quantitativas e qualitativas, a fim de mapearmos de forma empírica os aspectos objetivos e subjetivos da realidade social que impedem que se tenham convivências verdadeiramente plurais, ricas e saudáveis.


Referências bibliográficas

BENJAMIN, Ruha. Viral Justice: How We Grow the World We Want. Author, Ruha Benjamin. Publisher, Princeton University Press, 2022.


CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silêncio do lar ao silêncio escolar:racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. 6.ed.São Paulo: Contexto,2012.


KAERCHER, Gládis Elise P. da Silva. Racismo e educação antirracista: desafios contemporâneos da escola na busca de uma educação que contemple a diversidade. In: TONINI, Ivaine (Org.). Curso de Aperfeiçoamento: Produção de material didático para a diversidade. Porto Alegre: UFRGS, 2011, p. 100-105.

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