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Foto do escritorAnabelle Lages

Por que precisamos investir em uma educação antirracista?

Atualizado: 14 de jul. de 2023


Ainda que compartilhem o mesmo estômago, os crocodilos siameses disputam entre si o alimento. Esse ditado, originalmente criado pelo povo Gyaaman, da Região de Bono (Gana e Costa do Marfim), ao mesmo tempo que nos lembra sobre o quão tolos nós seres humanos podemos ser, mostra também que a interconexão, a unidade de propósitos e a diversidade são os nossos maiores trunfos.


Colocados à luz desse ensinamento ancestral, o racismo e todo o seu rastro de dor, iniquidade socioeconômica e pobreza cultural precisam ser urgentemente superados, afinal, todos nós habitamos o mesmo mundo e, junto à natureza, estamos sujeitos ao incrível horizonte de riqueza e potencialidades de sermos diversos. Pode parecer romântico, mas aqui não se contesta o fato de que os desdobramentos de uma ambiência racial hostil são absolutamente perversos à população não branca no Brasil e no mundo. Há dados robustos sendo continuamente produzidos sobre a matéria. Mais que isso, as chagas da escravidão, do genocídio dos povos indígenas, da abolição fictícia, da interdição dos estudos, da não incorporação da população negra no mercado de trabalho formal e com direitos, dos esquecimentos (propositalmente construídos) de nossa história recente e passada, bem como as antigas e novas práticas de discriminação confirmam que, ao mesmo tempo em que constitui, o racismo alimenta de maneira perversa o nosso organismo social.


No entanto, tornou-se comum dizer (e ouvir): “difícil, no Brasil, o racismo é estrutural...” e segue o baile. Continuamos achando que o racista é o outro, que o problema do racismo é do negro. Investir em uma educação antirracista é reconhecer que um ambiente racial hostil, empobrece todos os setores de nossas vidas, coletivamente. Por isso, para além das questões que envolvem os direitos humanos e os direitos civis da população negra, investir em uma educação antirracista significa investir na melhoria da qualidade de vida de todos. Toda a sociedade ganha com o antirracismo e aqueles que ainda não perceberam isso estão ficando para trás, seja no âmbito das políticas públicas, do mercado e, naturalmente, da educação formal.


Pensando na infância, por exemplo, existem inúmeros estudos buscando identificar os impactos causados pelo trauma na vida de crianças e adolescentes. Em geral, os sintomas pós-trauma podem ser caracterizados como intenso medo, ansiedade, sensação de desamparo, etc... e estão descritos nos critérios pós-traumáticos elencados pela Associação Americana de Psiquiatria. Na saúde pública, Arline Geronimus, passou quase quarenta anos alertando, através de suas pesquisas, que o racismo nos deixa doentes. Chama atenção para a maneira como ambientes raciais hostis causam a absorção de estressores, causando disparidades raciais em saúde, acarretando doenças evitáveis e mortes prematuras.


Tudo isso coloca em xeque o argumento sobre “condições preexistentes à doença”, por exemplo, que, por sua vez, orientam políticas públicas enviesadas, deixando de alcançar as populações às quais deveriam ser destinadas. Desconsiderar os impactos do racismo no Sistema Único de Saúde brasileiro é não enxergar a necessidade de abordar a saúde integralmente, em suas matrizes socioculturais, psíquicas e econômicas. Por sua vez, a educação antirracista em toda a extensão do sistema de saúde gera a circulação positiva de recursos que, investidos com precisão, são retornáveis em benefícios concretos para toda a sociedade.


Ainda no âmbito das políticas públicas, quando se pensa no investimento na educação antirracista nas escolas, a variável acesso precisa vir conjugada com reflexões que interseccionam classe, raça e gênero, pois os processos de exclusão atingem de maneira diferenciada aqueles que possuem um ou mais desses marcadores sociais. Recente nota técnica publicada pelo instituto Todos pela Educação mostra que há uma defasagem de 10 anos no acesso e na conclusão de estudantes pretos e pardos ao Ensino Médio, quando comparados com os estudantes brancos. Isso significa que, apenas em 2022, esses estudantes alcançaram os índices que os estudantes brancos possuíam em 2012. Assim, a promoção de uma ambiência racial saudável e culturalmente frutífera, desdobra-se na melhoria dos números de repetência, abandono e evasão escolar. Nesse contexto, os índices de distorção idade-série também são impactados, atuando positivamente na autoestima de nossas crianças e adolescentes. O avanço e a continuidade nos estudos significa poder sonhar, o que é tudo o que a gente quer, mas também significa uma população melhor qualificada para o mercado de trabalho, melhores empregos, salários, etc..


No entanto, as instituições educacionais, como instituições sociais que são, não estão imunes e contribuem para a perpetuação de perspectivas racistas. A ausência de alunos e alunas negras em escolas particulares, por exemplo, desdobra-se em uma cisão do mundo, gerando falta de empatia e perda de criatividade, peças fundamentais para enfrentar os desafios da vida adulta. Instituições escolares atentas a essas demandas devem buscar apoio em pesquisas e diagnósticos que as ajudem a encontrar o melhor caminho para fomentar em seus espaços programas que visem a promoção da igualdade social e da cidadania, como estabelece o Plano Nacional de Promoção da igualdade Racial, de 2009. Tais processos formativos permitirão que identifiquem suas práticas racistas, bem como os caminhos para superá-las.


No âmbito do Poder Judiciário, o Relatório para a Igualdade Racial no Judiciário projetou que apenas no ano de 2044 o judiciário brasileiro terá em sua composição 22% de magistrados e magistradas negros. A disparidade desses números reforça ainda mais a importância do Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial, que elencou quatro principais eixos de atuação: 1. Promoção da equidade racial no Poder Judiciário; 2. Desarticulação do racismo institucional; 3. Sistematização dos dados raciais do Poder Judiciário e 4. Articulação interinstitucional e social para a garantia de cultura antirracista na atuação do Poder Judiciário. Conhecer, não apenas numericamente, mas a realidade cotidiana de terceirizados, servidores, técnicos, estagiários e magistrados é o primeiro passo para um longo percurso de transformação que precisa ser operado nesses espaços de decisão. Os diagnósticos das relações internas dos Tribunais darão os subsídios necessários para o trabalho de capacitação de juízes e assessores alinhados à promoção de uma justiça comprometida com o antirracismo em todas as suas esferas de atuação.


No âmbito empresarial, uma pesquisa realizada no segundo semestre de 2022 pela CEGOS constatou que 75% das empresas brasileiras possuem ambientes racialmente hostis. Sabendo que a estética negra é alvo contínuo do racismo, esse número pode ser ainda maior, quando se observa que 37% das empresas apontam a aparência física como desencadeadora da discriminação. Mais da metade dos respondentes, 63% disseram que as violências partiram de colegas e ou gerentes diretos. Embora esse não tenha sido o enfoque da pesquisa, suspeitar que o nível de felicidade nesses espaços é baixo soa bastante plausível, ocasionando alta rotatividade de profissionais, conflitos entre pares, comprometimento da excelência na execução dos trabalhos, faltas, adoecimentos e licenças médicas.


Além disso, uma série de relatórios publicados pela Mckinsey & Company nos últimos anos (2015 - Why Diversity Matters, 2018 - Delivering through diversity e 2020 - Diversity Wins), têm associado diversidade racial e de gênero e chances de lucratividade acima da média das empresas; 25% para aquelas preocupadas em políticas de diversidade de gênero e 36% no caso das comprometidas com a diversidade étnica em suas equipes executivas. No entanto, a manutenção, o incremento e mesmo o retrocesso desses números dependerá da solidez e da permanência de tais políticas. Se o racismo se reinventa, é preciso estar continuamente vigilante.


Ainda no âmbito empresarial não se pode deixar de pensar no risco reputacional, bem como nos impactos financeiros gerados pela necessidade de responder a processos judiciais. No primeiro caso, significa que a reputação da empresa pode ser comprometida tanto pela publicidade, quanto pela venda de produtos racistas, ou seja, aqui, vale a máxima de que uma “imagem vale mais do que mil palavras”, (geralmente escritas nas já desacreditadas notas de repúdio). O capital reputacional de uma empresa requer cuidado em toda sua cadeia de produção, alcançando o compromisso de seus colaboradores, diretos e ou indiretos com os direitos trabalhistas de seus funcionários, por exemplo. Aliás, quando se fala de risco reputacional e em antirracismo, a máxima de que “os clientes sempre têm razão” cai por terra, mesmo eles podem prejudicar a imagem da empresa que, nesse caso, assume também o papel de educadora.


Em um cenário de consumidores atentos e letrados racialmente, os valores da empresa passam a ser avaliados em suas práticas e decisões, tornando cada vez mais nus discursos vazios de efetiva ação. O combo é a prevenção contínua contra práticas racistas e a rápida ação (reparação) na eventualidade delas. Como pessoas jurídicas únicas que são, cada empresa deve encontrar dentro de si os caminhos a percorrer rumo ao antirracismo e, consequentemente, às práticas de contratação, permanência e mobilidade vertical dentro de seus quadros, atenta não apenas à diversidade étnico-racial, mas também, à de gênero e de orientação sexual.


Investir em uma educação antirracista é reconhecer que o racismo não é ignorância e ou falta de conhecimento. Ao contrário, o racismo foi (e ainda é) social e cientificamente construído e seu “sucesso” vem justamente do fato de que houve (ainda há) uma transmissão às vezes silenciosa, outras, explícitas, desses ensinamentos. Padrões e paradigmas de conhecimento, formas distorcidas de se ver o mundo foram transmitidos de forma muito poderosa, fazendo com que geração após geração assumisse a ordem das coisas como algo “natural”. Assim, investir em uma educação antirracista é ousar pensar em novos mundos, mas vivenciar as alegrias vindouras requer o desmantelamento dessas estruturas que orientam nosso atual modo de viver.


Em um cenário de tantos desafios, tanto o esvaziamento do conceito de racismo estrutural, quanto o termo “aliado” precisam ser levados a debate. Em relação a este último, localiza-se muito mais próximo à ideia de assistência e de “salvação” (à la princesa isabel), do que à da economia do cuidado e da ética do bem viver, como proposto na carta da histórica Marcha de Mulheres Negras, de 2015. Uma interpretação limitadora poderia dizer “que ganha quem perde menos” e que a busca por justiça social e equidade racial é pauta assistencialista. É preciso que abandonemos essa lógica do ganha/perde e entendermos que o respeito aos direitos humanos significa uma vida mais rica social e culturalmente, para todo mundo. Do contrário, perdemos todos. Esses são os fundamentos do ESG sobre os quais falaremos em outra oportunidade, mas que também estão presentes naqueles ensinamentos sobre os crocodilos siameses.

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